Em 2017, o evento contou com mais de 150 ações em 52 pontos de São Miguel Paulista
Em um canto da Praça Morumbizinho, em São Miguel Paulista, crianças imaginavam qual poderia ser a história que Monteiro Lobato não chegou a contar sobre a vida de Tia Nastácia e Tio Barnabé, personagens negros e até então sem subjetividade em O Sítio do Picapau Amarelo. Não longe dali, em uma tenda com um grande baobá, alunos do curso de Letras da Universidade Cruzeiro do Sul contavam costumes e tradições da África, e, um pouco adiante, uma máquina do tempo levava crianças e jovens por uma viagem sensorial para desde antes dos tempos de escravidão, discutindo racismo e preconceitos. Todas essas atividades – e muitas outras – fizeram parte da oitava edição do Festival do Livro e da Literatura de São Miguel, realizada pela Fundação Tide Setubal nos dias 7, 8 e 9 de novembro.
Em 2017, o tema do evento foi Letras Pretas: poéticas de corpo e liberdade, que trouxe um debate sobre a importância da literatura negra e de sua valorização para a promoção da identidade negra, o fortalecimento do povo negro e a luta pela igualdade. A busca por mais equidade racial é uma das causas com as quais a Fundação Tide Setubal passou a trabalhar mais de perto neste novo momento institucional. “No Festival, a literatura é entendida como um instrumento de mediação para abordar temas importantes na sociedade contemporânea, permitindo que a gente pense em novos caminhos, imagine novos mundos”, diz Inácio Pereira, coordenador de projetos da Fundação Tide Setubal. “Em 2015, após constatarmos um aumento da intolerância e da ausência de escuta no país, decidimos trabalhar a importância das diferentes vozes na sociedade. Para incentivar o diálogo, optamos por tornar mais audíveis algumas dessas vozes, fundamentais para a equidade na sociedade; então escolhemos como tema para 2016 o feminino e o feminismo, trabalhando a igualdade de gênero; e este ano terminamos essa trilogia debatendo a questão racial e a literatura negra”, explica.
A busca por parcerias que fortaleçam as ações realizadas e contribuam para gerar mais impacto esteve presente no planejamento e execução do Festival. Em 2017, o evento foi apresentado pelo Ministério da Cultura, com parceria estratégica da Prefeitura de São Paulo, da Universidade Cruzeiro do Sul e do Museu Afro Brasil, apoio cultural do Sesc, patrocínio do Itaú BBA e realização da Fundação Tide Setubal.
“A Fundação Tide Setubal e o Festival do Livro e da Literatura de São Miguel, todo ano, se inserem em uma importante mobilização para que as pessoas, independentemente da idade, leiam mais e mais. Dessa forma, Fundação e Festival são agentes ativos de uma importante ação perene de valorizar a inteligência e a afetividade de brasileiras e brasileiros”, diz Eduardo Saron, diretor do Itaú Cultural, responsável pelo patrocínio do evento.
Para que o tema fosse trabalhado com propriedade e com o envolvimento de pessoas que há anos se dedicam à causa, a Fundação Tide Setubal convidou intelectuais e militantes do movimento negro para compor um conselho curatorial, envolvido desde as primeiras etapas de planejamento do evento. Integraram esse grupo Adriana Barbosa, empreendedora e criadora da Feira Preta; Andrio Cândido, ator e escritor de São Miguel Paulista e autor do livro de poesias Dente de Leão; Débora Garcia, poetisa, produtora cultural, integrante do Sarau das Pretas e autora do livro Coroações – aurora de poemas; Elizandra Souza, poeta, jornalista, integrante do Sarau das Pretas e autora do livro de poesias Águas da Cabaça; Iracema Santos do Nascimento, doutora em educação, pesquisadora e consultora na área; Maria Lúcia da Silva, psicóloga, psicanalista, integrante do Instituto Amma Psique e Negritude e organizadora do livro O Rascimo e o Negro no Brasil– questões para a psicanálise; Neide A. de Almeida, socióloga, mestre em linguística aplicada ao ensino de línguas e coordenadora do Núcleo de Educação do Museu Afro Brasil; e Renato Gama, cantor, compositor e produtor musical.
Além de opinar sobre atrações e convidados para a programação do evento, o conselho curatorial sugeriu que um tema trabalhado de modo transversal no evento fosse o letramento racial, abordagem pedagógica que analisa como aprendemos e usamos os signos e símbolos do racismo, para então desconstruí-los. Assim, antes do início do Festival, as escolas participantes receberam oficinas sobre o tema, conduzidas por Neide Almeida, do Museu Afro Brasil, e sugestões de como trabalhá-lo em sala de aula.
Para que a valorização da literatura negra, o debate sobre desigualdades raciais e racismo e o letramento racial fossem abordados também fora das escolas no período que antecedeu o evento, a área de comunicação da Fundação Tide Setubal produziu uma série de conteúdos online, como artigos de convidados e reportagens, trabalhando o tema. Também foi produzida, em parceria com o Canal Mova, a série Letras Pretas, veiculada no YouTube, que, em quatro episódios, abordou temas como o acesso ao livro e à literatura, a literatura negra, o letramento racial e o Festival do Livro e da Literatura como espaço de democratização e direito ao livro. Os episódios já tiveram mais de 28 mil visualizações. Confira abaixo os vídeos:
“Produzir a websérie foi a forma que encontramos de ampliar a capacidade de debate sobre o tema para além do espaço físico onde o evento é realizado. Queríamos romper a bolha e provocar as pessoas a refletir sobre racismo pela perspectiva da produção literária e do letramento racial”, afirma Fernanda Nobre, coordenadora de comunicação da Fundação Tide Setubal.
Graças ao intuito de incentivar o fortalecimento de organizações da região e promover o Festival com ampla participação de parceiros, em 2017 o evento cresceu: foram mais de 150 ações em 52 pontos do bairro, entre ruas, praças, escolas, bibliotecas, pontos de leitura, unidades básicas de saúde, centros de referência e espaços socioculturais.
“O Festival do Livro tem papel fundamental ao articular instituições de ensino, artistas, ativistas e autores de São Miguel Paulista, fortalecendo agentes locais e promovendo a literatura no território”, diz Paula Galeano, superintendente da Fundação Tide Setubal.
Uma nova atração, fruto da temática de 2017, foi a Ocupação Feira Preta Afroliterária, que aconteceu no pátio da Universidade Cruzeiro do Sul, com a exposição e venda de produtos de moda e artesanato de 21 afroempreendedores. A ocupação foi organizada pela Feira Preta, que tem como proposta promover o desenvolvimento sociocultural da comunidade negra no país, por meio do fomento ao empreendedorismo e fortalecimento de artistas e microempreendedores afro-brasileiros ou que atuam com o mercado étnico. “Foi a primeira vez que a Feira participou do Festival do Livro, que, em 2017, teve como tema a literatura negra. A Feira teve uma área de literatura negra e a ideia foi unir esses dois eventos e os universos tanto da literatura como da cultura negra de uma forma mais ampla, trazendo reflexões sobre o contexto da área de literatura negra hoje, do ponto de vista do empreendedorismo”, afirma Adriana Barbosa, criadora da Feira Preta. Além de trazer produtos feitos pelos empreendedores negros, a ocupação realizou os painéis: 40 Anos do Quilombhoje – construção de uma trajetória em promoção da literatura negra brasileira; Bate-Papo de Jornalistas – por uma comunicação preta; e Por uma Educação Infantil mais Inclusiva.
Entre as demais atrações da oitava edição do Festival estavam intervenções artísticas, contação de histórias, saraus, peças de teatro, conversas com autores, cortejos literários, interpretações de programas de TVs na rua, venda e troca de livros e os tradicionais frutos literários pendurados em árvores para ser colhidos.
A Praça Fortunato da Silveira, conhecida como Morumbizinho, reuniu diversas atividades simultâneas durante os três dias do evento e recebeu a visita de estudantes de todas as idades, da educação infantil ao EJA. Muitas ações realizadas no local foram resultado da parceria com a Universidade Cruzeiro do Sul (Unicsul), que já ocorre há várias edições do Festival.
“Nestes quatro anos de participação no Festival do Livro e da Literatura de São Miguel, os discentes do curso de letras viveram uma experiência prática e lúdica com crianças e jovens de diferentes escolas e níveis, contribuindo para a formação dos futuros docentes, que perceberam, durante o evento, que há outras formas de incentivo à leitura e de falar sobre a literatura. Como professora do curso, observo que muitos alunos se descobrem no Festival e ficam mais convictos da escolha que fizeram: a docência. Para a universidade, é uma forma de se relacionar com a comunidade, ocupando outros espaços e assumindo sua responsabilidade social”, relatou a coordenadora do curso de letras da instituição, Helba Carvalho, em artigo publicado na revista online Linha D’Água.
Integraram também a programação do evento debates com autores e especialistas em literatura negra, comunicação e questões raciais. A mesa O Corpo – da literatura à psique trouxe uma reflexão sobre os impactos negativos do racismo e os caminhos traçados por autores negros na busca de garantir mais pluralidade e diversidade às narrativas, com a participação da psicóloga e psicanalista Maria Lúcia da Silva; do poeta e escritor Luiz da Silva, conhecido pelo pseudônimo de Cuti; e da escritora Ana Maria Gonçalves. Já no debate Sujeitos Periféricos: identidade e protagonismo, Débora Garcia, poetisa, produtora cultural e idealizadora do Sarau das Pretas; e Akin Kinte, coautor do livro Punga, debateram a literatura como um instrumento de inclusão dos territórios periféricos.
Para encerrar a festa, o público assistiu ao show Canções e Poemas Periféricos, idealizado pelo músico Renato Gama, que contou com versões musicais de poemas de diversas artistas pelos intérpretes Mariana Per, Luedji Luna, Heloisa de Lima, Adriana Moreira, Tita Reis, Melvin Santhana, Renato Pessoa e Gabrielle Raini.
Confira um vídeo da última edição do Festival: